Finalmente consegui agendar novo atendimento para requerer o
tão sonhado passaporte. Desta vez munida de todos os documentos possíveis e
imagináveis, faltando-me somente os brasões e uma muda da árvore genealógica da
família. Talvez fosse prudente levar uma pequena autobiografia, já que seria
indubitavelmente original, sem as polêmicas que dividem opiniões atualmente.
A espera pelo atendimento foi longa apesar do horário marcado
e não havendo o que fazer, criei uma história resumida sobre mim, que poderia
ser útil para melhorar o humor da atendente, já que quase sempre são inaptas e
despreparadas para lidar com pessoas, repetindo frases automáticas e decoradas
com o detestável gerundismo.
Algo mais ou menos assim: Era uma vez uma menina, que por
sorte e muito empenho dos que a antecederam, nasceu em berço mais confortável
do que a maioria. Sonhou sonhos meninos que viveu intensamente em suas
fantasias, enquanto os caminhos reais se desenhavam devagarinho a cada passo
que inventava imaginando-se bailarina.
Tagarela e perguntadeira, mas mineira, logo aprendeu a buscar
as respostas silenciosas dos livros e foi o saber calado que aprendeu neles,
que iluminou a escrivaninha, quando lá fora era uma noite escura e triste,
entrecortada por lamentos e dores, que pareciam não ter fim.
Quando finalmente anunciaram a manhã, percebeu as sementes já
semeadas que exigiriam muito cuidado até que florescessem e seguiu fazendo o
seu pouco, menos do que gostaria. Primeiro ouviu o choro desconsolado das
crianças abandonadas e desvalidas; depois os brados adolescentes que clamavam
às avessas, sedentos por seus direitos; e mais tarde as queixas aflitas dos
doentes, amontoados em filas. Já não era a menina sonhadora dos primeiros
tempos e anônima como abelha operária numa imensa colmeia, fez de seu trabalho
aconchego e lenitivo para tantas dores.
Deixando pedrinhas coloridas por onde passou, agora pôde
olhar para trás e ver-se trilhando passo a passo os caminhos que escolheu, reinventando
outros tantos a percorrer.
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