Rancho na Serra do Cipó, Atlas
zur Reise in Brasilien ,1826.
Ando com vontade de cachoeira, de pés descalços, café com rapadura e
conversa ao pé do fogão de lenha. E enquanto busco o lugar ideal, viajo por meu
interior. Era assim a fazenda com a casa centenária de janelas sem frestas,
iluminada a bicos de gás, espantando os uivos lunares que ecoavam nas rochas.
Inevitáveis eram as histórias de não fazer dormir, que animavam nossas
noites. Muitas passavam por personagens reais e familiares, já que toda família
que se preza tem ao menos um entre os parentes, de quem se tenha casos,
digamos, peculiares para contar. Tenho a sorte de ter alguns.
Vem-me a fisionomia rosada e sorridente de Noemi, uma das tias-avós
maternas, jovial aos sessenta e poucos anos, quando convivemos com maior
proximidade. Eram dias divertidos em sua casa colorida pelas porcelanas
chinesas e inglesas que colecionava, milimetricamente dispostas por toda parte.
Da mocidade contava, vaidosa, além de ter sido namoradeira, sobre o curso de
enfermagem, raridade entre mulheres de sua geração, sua salvação e sustento
quando sobreveio a prematura viuvez. Do marido, guardou os olhos azuis da filha
e seguiu, sem contudo se negar ao namorado, negro e elegante, que aqueceu suas
noites por muitos anos.
Sua alegria de viver e imaginação deliciosamente fértil não se abateram
frente ao câncer de mama, combatido com os poucos recursos médicos da época. E
sobreviveram! Quem a via em seu tailleur em tom pastel e sedosos cabelos
brancos, jamais imaginaria suas tantas cicatrizes.
Pelas dez e meia da manhã, hora de preparar o almoço. E almoço mineiro,
temperado pela prosa boa das mulheres na cozinha, partilhando tarefas e
receitas, especiais e quase secretas.
Sai Noemi, apressada, voltando do quarto com a grande tesoura de costura
na mão. Sem se importar com nossos olhares curiosos, corta inusitadamente a
couve, bem fininha, enquanto nos conta da descendência direta do Barão de Catas
Altas ou seria de Cocais?
Publicada no Jornal "O Pioneiro" em 09/12/2012
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