Ilustração:
Janela com dálias – Raquel Taraborelli
Amanheci. Ao longe o sino da Igreja, seguido pelo galo insistente e o
coral de pássaros anônimos, canto em desalinho, que banha minha janela. Uma
janela realmente lateral do quarto de dormir, com a permissão de Lô e Brant. É
assim meu interior na cidade grande, uma natureza, na plenitude da
primavera,que ainda persiste em meio ao concreto.
O beijo matinal, banho, o filho que sai para a escola, café adoçado com
carinho e logo o trajeto para o trabalho. No caminho revejo e organizo a agenda
do dia, enquanto me atraso, passando porobras, muitas obras. Capacetes
coloridos em tantas formigas humanas que constroem e muitas vezes não pensam
além do Panem nostrumquotidianum da
nobishodie (o pão nosso de cada dia nos dai hoje). Apenasconstroem para
sobreviver.
A gente se acostuma, mas não devia,
sim, Marina Colasanti! Pequenos jardins coloridos, pássaros aprisionados e
crianças nos parques apontam a dicotomia, a busca de harmonia em pedacinhos de
natureza, que preservamos a todo custo. Pedacinhos, partes, cotas, quotidiano,
sigo o dia.
Vai-se a manhã atarefada com números roubando-me a poesia, intermináveis
planilhas de custo voltadas para a saúde de tantos carentes e desconhecidos,
planilhas que demonstram o quanto custa, sem sequer insinuar o quanto vale.
Em meio à tarde, o telefone toca, é D. Lola, de Linhares. Na voz doce e
generosa, de quem ainda não conheço o olhar, a pausa gostosa, o aconchego. Fala
de seu jardim, onde nascem as flores do delicado bordado de Caicó que perfumam
o linho e convida para experimentar sua tapioca. Irrecusável, em tão deliciosa
companhia!
Bem, é sempre bom abstrair da rotina, pensando em porcelanas com flores
de cerejeiras e inundadas pelo perfume do jasmim, com a lembrança das boas
senhoras, que povoaram minha infância nas Gerais.
Ao fundo, na memória, quotidiano de Chico Buarque. Lá fora, um ruído
ensurdecedor. É que as cigarras chegaram!
Publicação no Jornal "O Pioneiro" em 28/10/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário